Matéria publicada na VOGUE – Negócios
Por Fernanda Simon – 30/07/2024
Como a bioeconomia pode impulsionar a sociobiodiversidade e a moda brasileira — Foto: André Carioba
Perante os atuais desafios sociais e climáticos, é necessário buscar alternativas econômicas que priorizem a saúde e o bem-estar das pessoas e do planeta. Desta forma, olhar para a floresta, seus recursos naturais, saberes ancestrais e, principalmente, a relação das comunidades com os territórios, pode contribuir na construção de modelos de negócios mais sustentáveis. De acordo com a bióloga e diretora regional da Sociedade Brasileira de Economia Ecológica, Dra. Nina Lys Nunes, a bioeconomia é um conceito amplo, fluido e em evolução: “A definição de bioeconomia é extensa, pois abrange mais do que um setor econômico e sintetiza um conjunto de valores ético-normativos relativos à relação entre a sociedade e a natureza, e as suas consequências”.
A bióloga explica que a bioeconomia tem se mostrado uma ciência com amplo potencial e vem ganhando destaque nas políticas públicas de vários países: “A bioeconomia na escola de pensamento da Economia Ecológica busca fortalecer as comunidades que detêm conhecimentos sobre o uso e manejo da biodiversidade local, impulsionando a inclusão produtiva para as comunidades. Esse conceito destaca a importância do equilíbrio entre o uso da biodiversidade e o bem-estar social”.
Porém, além da teoria, é importante observar o quanto as comunidades produtivas são, de fato, beneficiadas. Na moda, setor diretamente atrelado à produção de matérias-primas e a processos e práticas nocivas ao meio ambiente, a bioeconomia pode fomentar alternativas. No entanto, é preciso avaliar na prática o quanto projetos e empresas de moda que trabalham com comunidades produtivas estão realmente contribuindo com um impacto positivo.
Glícia Cáuper, ativista manauara e representante do Fashion Revolution no Amazonas, ressalta: “Trabalhar com a moda e bioeconomia é verificar, de forma escancarada, que ainda existe uma hierarquia de saberes em nossa sociedade, na qual os saberes artesanais são os menos valorizados. É inegável que o trabalho de criação de um campo imagético desejável, realizado por diversas marcas que usam a sustentabilidade como peça integrante de seus produtos, influencia diretamente no retorno financeiro que é dado às comunidades, à medida que as imagens fazem com que mais pessoas se interessem por trabalhos artesanais, que tenham os biomateriais como insumo. Mas a grande questão que fica é: é justo este retorno financeiro?”.
Embora haja alguns exemplos de sucesso nos quais marcas de moda realizam compromissos robustos com comunidades produtivas, é preciso ressaltar o papel fundamental do terceiro setor em apoiar a organização das iniciativas, bem como as negociações.
Um exemplo é o trabalho realizado pelo Legado Integrado da Região Amazônica (LIRA), uma iniciativa do Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ), que promove a conservação da floresta e o desenvolvimento de negócios comunitários na Amazônia. Fundado pela bióloga Fabiana Prado, o LIRA/IPÊ visa aprimorar os esforços de conservação no bioma amazônico. A iniciativa financia projetos socioambientais junto a povos e comunidades tradicionais, gera e dissemina conhecimento, e apoia políticas públicas para a conservação da Amazônia e a resiliência climática. “A iniciativa busca não apenas conservar a floresta, mas também integrar conhecimento e engajar mulheres para maior protagonismo, essenciais no tecido socioeconômico da região”, diz Fabiana.
A Associação dos Moradores da Comunidade do Jaramacaru e Região (ACAJE), no Pará, exemplifica como o LIRA/IPÊ apoia negócios locais e promove a autonomia feminina. Com esse apoio, a ACAJE desenvolveu uma abordagem abrangente para a gestão de produtos florestais, com foco em castanhas-do-pará e sementes de cumaru. Porém, as mulheres da ACAJE também produzem biojoias a partir de sementes, cascas de coco e penas, proporcionando uma fonte adicional de renda e estimulando a criatividade e o empreendedorismo. Além disso, a iniciativa colabora com a Cooperativa de Produção e Desenvolvimento da Floresta Amazônica (CopaFlora), para garantir preços justos e melhor acesso ao mercado.
Fruto de uma parceria entre o LIRA/IPÊ, a Associação Indígena Aldeia Tukaya – AITEX, da Terra Indígena Xipaya, no Xingu, a empresa Mercur e a marca Bossapack (que produz bolsas e mochilas a partir do látex agora contam com a vulcanizadora, um novo equipamento que representa um avanço tecnológico, trazendo vários benefícios para a comunidade local. A vulcanizadora acelera a secagem de tecidos encauchados, estes produzidos pela combinação de uma técnica indígena antiga que desidrata o látex, com a tecnologia científica industrial moderna, que usa, principalmente, energia solar.
A pintura dos tecidos é realizada por mulheres da comunidade. Elas utilizam pigmentos naturais como o urucum, promovendo a inclusão social e econômica, oferecendo novas fontes de renda e fortalecendo suas posições na comunidade. O projeto envolve 30 pessoas, principalmente jovens entre 16 e 26 anos, e é uma fonte de oportunidades de emprego e desenvolvimento de habilidades.
Sidiane Sampaio, sócia da ACAJE, ressalta que os maiores desafios incluem a falta de políticas públicas que atendam às suas necessidades: “Queremos mais envolvimento do Estado, pois sentimos uma carência significativa. Nós, como extrativistas, não queremos apenas colher castanha e cumaru, mas também queremos estudar e ter acesso a uma educação de qualidade. Precisamos de um olhar mais especial para o povo extrativista, incluindo o amparo do INSS para auxílio-doença, pois enfrentamos muitos riscos, como acidentes de trabalho e picadas de cobra, sem suporte adequado”.
Diante dos esforços do terceiro setor em criar estratégias para a bioeconomia, é necessário cobrar o papel do governo e do setor privado. Políticas públicas são fundamentais para garantir acesso a subsídios e benefícios, bem como transparência e trocas justas por parte das empresas.
Para a designer Naisha Cardoso, de Belém, que também está à frente do coletivo de marcas regionais, Hevea, diz: “Eu penso que sempre deve ser avaliado com o olhar para não virar commodities, para ter o retorno justo e certo para a comunidade. Vejo, por exemplo, as famílias de Combu, que forneceram a priprioca para uma grande marca de cosméticos – eles estão cada vez mais vulneráveis ao desenvolvimento e à interferência nos rios e nos ciclos naturais do clima. Tudo recai sobre eles”.
“Eu acredito que a bioeconomia é um caminho importante para trazer sustentabilidade na moda. Nossa floresta é muito rica e linda, com sementes e materiais naturais que podem ser transformados em biojoias e artesanatos incríveis, como cestos e peças de palha de coqueiro. Aqui na comunidade, incentivamos a utilização sustentável dos recursos da floresta, mostrando que ela pode nos proporcionar várias formas de renda além da castanha e do cumaru. As biojoias produzidas com materiais coletados na nossa reserva são exemplos de como podemos criar obras de arte lindas, como colares e brincos”, aponta Sidiane.
Glícia complementa: “Até o momento, desconheço marcas que apresentem, de forma transparente, fácil e acessível, dados sobre o retorno financeiro que as comunidades produtivas recebem. A maior parte das marcas apresenta conteúdo sobre os biomateriais que utiliza, mostrando como eles são beneficiados e utilizados na confecção de suas peças. Quanto às mãos que dão vida a essas peças, vejo que, constantemente, as marcas circulam suas imagens sem que haja uma devida comunicação acerca do uso de sua imagem e questões correlatas. Outra questão é o fato de apenas os gestores das marcas participarem de grandes eventos como porta-vozes dos artesãos. Em grande maioria, esses gestores não vivenciam o que os artesãos vivenciam, mas recebem os louros por estarem valorizando o artesanato. Mas me pego pensando: que tipo de valorização é essa, em que o artesão não tem voz de verdade, não comparece nos espaços de poder, e sequer temos como saber quanto ele efetivamente recebe por cada material produzido?”.
“Caso não haja possibilidade de comprar diretamente dos artesãos, acredito que o ideal é comprar de cooperativas e associações de artesãos. Da realidade que vivencio, estes são os que mais se aproximam de uma transparência real, podendo ser entendidos como “casos de sucesso”, afinal, seus representantes são artesãos, e boa parte dos valores arrecadados retornam para a comunidade através de projetos sociais que levam cursos profissionalizantes e palestras educativas que abordam temas jurídicos, políticos e sociais”, finaliza a ativista.
A valorização dos diversos materiais, saberes, culturas e povos pode fortalecer a identidade da moda nacional e impulsionar a produção interna, especialmente diante da concorrência desleal de produtos fabricados em larga escala no exterior.
Portanto, o setor da moda, por meio da bioeconomia, pode estimular inúmeras oportunidades para o desenvolvimento sustentável dos territórios brasileiros e fomentar a moda nacional de maneira sistêmica. No entanto, é crucial garantir a participação de organizações locais e assegurar que as negociações priorizem verdadeiramente o bem-estar das comunidades e a proteção do meio ambiente.